terça-feira, 23 de agosto de 2011

Somos todos pedestres

O assunto está na boca do povo, mas ainda não atingiu as mentes dementes dos administradores, motoristas nem a dos pedestres que continuam dando sopa ao azar e pensando que estão mesmo em um lugar civilizado

Meu grande amigo de visual  sempre atravessava a rua apressado, impositivo, quase se jogando suicida no meio do violento trânsito de São São Rafael/RN. Quando estávamos juntos, eu ficava louco e ao mesmo tempo bobo de ver os carros passando de um lado para o outro sem sinalização com as setinha chamada de sinaleira, educados e solícitos, como se ele fosse o próprio guarda de trânsito encarnado com bloquinho na mão ou fosse as demarcações de faixas dos países onde isso funciona - você põe o pé para fora da calçada e os carros param. "Você acha que alguém vai querer me atropelar? Já pensou o furdunço que ia ser?" - e caía na gargalhada. Funcionava.
Agora são festas que libertam o fetiche interior de cada um. Lembrei-me dele também porque nos últimos dias o assunto pedestre anda fervendo. Por vários motivos. Por causa da campanha a favor, das multas milionárias impostas a quem é pego sacaneando, e por causa de pesquisas que dizem que a maioria dos brasileiros se locomove é a pé, aqui sim ao contrário do que podíamos pensar. Pensei também por causa das muitas marcas de sangue nos asfaltos da vida - o moço inteligente que voltava para casa a pé e foi atropelado, uma professorinha aposentada atropelada na faixa e dezenas de outros anônimos, que não voltaram, todos mortos no espaço de um tempo de atravessar, de uma calçada a outra. Será menos perigoso atravessar um rio de jacarés?
Ser pedestre em São Rafael/RN é mesmo uma das coisas mais perigosas e também uma das mais democráticas. Todo mundo é pedestre. E uma hora atravessa a rua, ou alguma coisa. Igual aquela velha piadinha que perguntava "Por que o frango atravessou a rua?" - seguida de várias respostas. Uma criança: Por que sim. Aristóteles: É da natureza do frango cruzar a avenida. Marx: O atual estágio das forças produtivas exigia uma nova classe de frangos, capazes de atravessar a rua. Martin Luther King: Eu tive um sonho. Vi um mundo no qual todos os frangos serão livres para cruzar a estrada sem que sejam questionados seus motivos. Einstein: Se o frango atravessou a rua ou se a rua se moveu sob o frango, depende do ponto de vista. Tudo é relativo. Heloisa Helena: A culpa é das elites estelionatárias,caucasianas e aristocráticas que usurpam a população de frangos e mostra a sua capacidade de luta em defesa dos seus direitos.
Não importa como, por que, onde, contra quem. Um dia atravessamos. Pedestre pode ser estátua, e até a linguagem rasteira.  isso há. No momento em que o pedestre vira motorista, do motorista que esquece que também é pedestre -há um pega pra capar. O cara do carro de trás que buzina, chato, e que acha que você o está atrasando na vida porque deu passagem ao velhinho, e parou para não matar. E nessa guerra, também democrática, há o próprio pedestre que vem maluco ao seu encontro, para te atropelar como se fosse ele uma jamanta de lata, ou um blindado. Ou mero suicida. Deviam aprender com os viralatas mais espertos.
Ouvi dizer que vão vender a "mãozinha" em miniaturas, no comércio popular. A mãozinha é uma, de papelão ou plástico, como um tchauzinho na ponta de uma vara, que alerta com um PARE e que está sendo usada nos cruzamentos aqui, será que term uma? - uma bem grande - para conscientizar a população dos dois lados.
Mas esse personagem da cidade, o pedestre, é sui generis. Nunca vi fazerem teste de bafômetro em alguns, mas deveria ter. Nunca os vi serem multados por atravessarem fora das faixas, na diagonal, falando ao celular, mandando SMS (isso eu já vi!), mascando chicletes, olhando para a sua cara cinicamente, balançando a bunda, andando com roupa toda preta no escuro, surgindo de trás de postes e árvores. Também nunca vi pais, mães, babás serem multados por primeiro colocar os coitadinhos na frente, como se o carrinho dos pequeninos fosse armadura.
Também são eles, os pedestres, e assim somos nós todos, que são assaltados, que se machucam nas calçadas, que viram o pé, escorregam, tropeçam e se estabacam nas mal cuidadas ruas, e infinidades de minas terrestres de buracos, cachorros podem morder, e portões de garagem podem abrir ou fechar nas suas cabeças.
Mas nem tudo é ruim assim, não. Andando, o pedestre consome mais calorias e emite menos gás carbônico na atmosfera desse mundo tão horrivel. Andando, pode observar melhor as belezas dessa vida e virar o pescoço quando uma dessas passa, também pedestre, com um bom rebolado, e isso até pode virar uma composição de sucesso - olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela, menina, que vem e que passa, gostosas musa das sexta dos tarados aloprados...
Pode ir devagar, ou ligeiro, correndo, andando. Mas, solto, nesta solitária atividade, também pode encontrar um amor como nas propagandas de tevê, onde isso é comum. Pode encontrar um amigo. Dar chance à vida. Uma chance que só ocorrerá quando todos lembrarem que é só uma questão de tempo e espaço. Há quadrúpedes inveterados. Mas todos somos pedestres.

Não sei se o código prevê algum tipo de punição para o governante que mente. Ou para o governante relapso, capaz de ignorar milionários contratos sem licitação assinados. Haverá de prever se for um código bem feito.
Aguardemos, pois, algum tipo de punição para José? em 2012 teremos essa chance.


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